O procurador-geral da República, Paulo Gonet, terá que contornar entendimento jurídico já emitido por seu próprio órgão se quiser denunciar o ex-presidente Jair Bolsonaro no caso das joias. No ano passado, quando a investigação foi iniciada no Supremo Tribunal Federal (STF), a subprocuradora Lindôra Araújo, que auxiliava o ex-PGR Augusto Aras em inquéritos criminais, afirmou nos autos que o caso sequer deveria tramitar na Corte, muito menos sob a condução do ministro Alexandre de Moraes, que avocou para si o papel de relator.
Apontou não apenas o fato de que nenhum dos investigados – Bolsonaro e alguns de ex-auxiliares na Presidência – tinha foro privilegiado, mas também a falta de conexão com outras investigações usadas por Moraes para assumir o caso. Pior: uma outra investigação da própria Polícia Federal sobre o tema já estava em curso e em fase adiantada por policiais da delegacia da corporação em Guarulhos (SP).
Já havia um procurador do Ministério Público Federal acompanhando o caso e um juiz federal, concursado e de primeira instância, supervisionando a investigação e autorizando diligências. Em agosto de 2023, quando Moraes mandou a PF de Brasília fazer nova busca e apreensão dentro do inquérito que ele abriu no STF, a investigação de Guarulhos, sobre os mesmos fatos, já tinha quase 5 mil páginas, vários depoimentos tomados, buscas e apreensões já realizadas, além de provas obtidas em quebras de sigilo telefônico e telemático.
Naquele mês, ao autorizar uma busca na casa do advogado de Bolsonaro, o ministro registrou o pedido da PGR para declinar e deixar o caso na primeira instância, mas não rebateu os argumentos de Lindôra na decisão e tocou o inquérito para frente.
Nesta quinta-feira (4), uma equipe da PF de Brasília que já toca outras investigações de Moraes contra Bolsonaro, indiciou o ex-presidente e outras 11 pessoas, imputando ao grupo crimes de peculato (apropriação de bem público), lavagem de dinheiro e associação criminosa. O processo está sob sigilo.
O parecer de Lindôra, de agosto do ano passado, confronta, em primeiro lugar, um gráfico desenhado pela PF de Brasília para justificar a condução de Moraes.
Num diagrama, o delegado Fábio Shor – que executa outras diversas investigações a cargo de Moraes – tenta demonstrar que a tentativa de ex-ajudantes de Bolsonaro de vender presentes que ele ganhou na Presidência estariam relacionados à falsificação de seu cartão de vacinação (fato investigado num procedimento à parte), bem como a “ataques virtuais” a opositores, “às instituições”, às urnas eletrônicas e às vacinas.
Tudo isso ainda teria conexão com a suposta tentativa de golpe de Estado e, em última análise, às ofensas e supostas ameaças ao STF e seus ministros, objeto do inquérito das “fake news”, aberto de ofício em 2019 por Dias Toffoli e delegado a dedo para Moraes.
Lindôra Araújo escreveu que não havia conexão entre esses fatos. “Procede-se à construção de um salto esquemático, representado pelo gráfico de fls. 16, 29 e 198, que, apesar de não ostentar vinculação alguma entre os objetos de investigação, revela o propósito de justificar a atração da competência do Supremo Tribunal Federal e a prevenção desta relatoria para a tramitação da presente petição”, escreveu.
Acrescentou que, a partir da ideia, concebida na Corte, que estendeu o alcance do inquérito das fake news para investigar qualquer “ataque” aos ministros na internet, essa investigação, bem como outra correlata, sobre as “milícias digitais”, aberta por Moraes, passaram a funcionar como “guarda-chuva”, para cobrir fatos sem uma relação clara entre si. Em suas palavras, “objetos de investigação absolutamente independentes”.
Ela enfatizou a falta de foro privilegiado dos investigados e também a existência da investigação de Guarulhos sobre o caso das joias, em que as mesmas pessoas investigadas por Moraes já eram alvo – o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; o coronel Marcelo Costa Câmara, que também assessorava o ex-presidente; Osmar Crivelatti, outro ex-assessor; e Marcelo da Silva Vieira, ex-chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) da Presidência e a quem cabia classificar como públicos ou privados os presentes.
“Cuida-se de Inquérito Policial formalizado no dia 6 de março de 2023, quando nenhum dos investigados ocupavam cargo com foro por prerrogativa de função, e que se encontra em estágio avançado, já contando com quase 5 mil páginas, inúmeras oitivas, referências ao envolvimento de outras pessoas e um volume extenso de documentos, além de medidas cautelares de busca e apreensão, de quebra de sigilo telefônico e telemático”, detalhou Lindôra.
“Ainda que se pretenda sustentar que o objeto da presente petição seria mais amplo, não se justifica a instauração de procedimento em duplicidade (...) renovando-se uma série de diligências e medidas persecutórias conduzidas por autoridades que já possuem familiaridade com o arcabouço probatório, em detrimento da eficiência da instrução procedimental e processual”, argumentou ainda.
No STF, onde o caso acabou permanecendo, caberá agora a Paulo Gonet – nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de procurador-geral com forte apoio de Moraes – rebater os argumentos da própria PGR caso opte por denunciar Bolsonaro. Com o indiciamento, cabe a ele não apenas analisar se há indícios fortes de autoria e materialidade dos crimes, como concluiu a PF de Brasília, como também justificar a permanência do caso no STF. Se houver denúncia, os outros 10 ministros do STF ainda poderão reavaliar a competência da Corte para analisar o caso e decidir se ele fica mesmo sob a condução de Moraes.