O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem adotado, cada vez mais, práticas ousadas e criativas para contornar o impacto dos seus crescentes gastos sobre as contas públicas. A estratégia que se assemelha à que resultou no impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016.
A maior diferença é que Lula tem tido respaldo do Congresso, do Judiciário e de órgãos de controle para seus improvisos, que vão desde do uso não contabilizado de recursos de fundos públicos e privados ao uso de receitas com exploração de petróleo. Além disso, Dilma estava sujeita só à Lei de Responsabilidade Fiscal, sem nenhum marco para as contas.
Para analistas, as práticas parafiscais podem ganhar tração maior nos próximos anos, sobretudo em razões de emergência, a exemplo da recente liberação de R$ 514 milhões para combater incêndios, sem passar pelos crivos do Legislativo e do arcabouço fiscal, autorizada pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Independente dos montantes autorizados, esses dribles fiscais impactam a dívida pública de qualquer maneira, mesmo não interferindo no resultado do arcabouço.
Dívida segue em alta em meio à menor confiança na meta de equilíbrio fiscal
Apesar da inevitável deterioração fiscal, com piora da confiança na capacidade de o governo cumprir a sua meta de déficit zero, o diretor-geral da ONG Ranking dos Políticos, Juan Gonçalves, considera ainda difícil fazer a correlação entre as manobras fiscais de Lula e as pedaladas de Dilma.
“No governo da presidente, tudo que se configurou como uma tentativa de burlar a responsabilidade fiscal era mais claro. No governo atual, contudo, ainda não se pode afirmar categoricamente que estão ocorrendo pedaladas fiscais pela definição do ato em si. Mas o quadro fiscal preocupa”, explicou.
O consultor eleitoral e cientista político Paulo Kramer pensa diferente e acredita que Lula já contorna o arcabouço fiscal com fundos privados não-contabilizados no Orçamento federal e programas como o Pé-de-Meia e Gás para Todos. “Foi com manobras assim que Dilma cavou o seu impeachment”, frisou.
Para uma crise semelhante se repetir faltam condições políticas e econômicas que, contudo, não estão no horizonte atual.
"Pedalada fiscal" é o termo usado para descrever prática contábil adotada pelo Executivo com o objetivo de cumprir metas fiscais, criando a aparência de equilíbrio entre receitas e despesas. No caso do governo Dilma, o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o Tesouro teria, deliberadamente, atrasado o repasse de verbas para instituições como a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o BNDES e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).
Esses repasses eram destinados ao pagamento de programas sociais, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, além de benefícios como o abono salarial, seguro-desemprego e subsídios agrícolas. Essas instituições, por sua vez, cobriam os pagamentos com recursos próprios, garantindo que os beneficiários recebessem em dia. Entretanto, o governo deixava de registrar essas dívidas nas estatísticas da dívida pública, adiando a sua contabilização para o mês seguinte. Dessa forma, os resultados das contas públicas aparentavam estar em ordem, embora a realidade fosse outra.
Uso de fundos privados e públicos visa estímulo fiscal paralelo à economia
Nos últimos dias, a Câmara aprovou projeto autorizando a União a aumentar em R$ 4,5 bilhões a sua participação no Fundo de Garantia de Operações (FGO), que cobre inadimplências em crédito para pequenos negócios. A medida foi motivada pela calamidade no Rio Grande do Sul, mas há o temor de que, como na pandemia, esses valores não voltem mais ao Tesouro.
Os deputados também autorizaram o uso de até R$ 20 bilhões do superávit do Fundo Social (FS) para crédito voltado à mitigação de danos com as mudanças climáticas. Além disso, Lula sancionou lei que permite ao Fundo Nacional de Aviação Civil (Fnac) emprestar dinheiro às companhias aéreas e subsidiar a compra de querosene para rotas na Amazônia.
O uso crescente desses fundos ocorre em paralelo a um aumento de financiamentos do BNDES, que liberou verbas equivalentes a 1,1% do PIB em 2023 e prevê recursos na ordem de 1,3% do PIB em 2024. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), instituição ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia, também segue a toada como “BNDES paralelo”. Só em 2023, a entidade emprestou R$ 11,4 bilhões a juros subsidiados, sem muito critério claro.
O orçamento da Finep cresceu 33% no primeiro ano do governo, atingindo R$ 68,6 bilhões em investimentos e o maior volume de contratos desde 2014. A oposição no Congresso critica a falta de transparência nos projetos financiados e a liberação de recursos sem transparência. Outro vetor controverso de estímulo artificial à economia envolve a proposta do governo de flexibilizar normas que regem fundos de pensão.
Maior manobra fiscal de Lula está em projeto de lei para turbinar o auxílio gás
A maior manobra fiscal de Lula está sendo planejada no programa Gás para Todos, que prevê expansão significativa do Auxílio Gás. O governo pretende gastar R$ 13,6 bilhões anuais a partir de 2026, beneficiando 20,8 milhões de famílias, um salto de 267% nos custos em relação ao benefício atual.
Para financiar o programa, o governo planeja usar receitas da venda de petróleo do pré-sal, repassando os recursos diretamente à Caixa Econômica Federal, sem passar pelo caixa do Tesouro, contornando assim as regras fiscais. Analistas receiam que o uso de receitas não recorrentes e o desvio de recursos do pré-sal podem comprometer o Fundo Social, elevar o déficit público e intensificar a desconfiança acerca da solvência do país.
A iniciativa faz parte de um projeto de lei (PL) assinado pelos ministros Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Fernando Haddad (Fazenda). Encaminhado por Lula ao Congresso, o PL 3.335/2024 propõe modificar o Auxílio Gás e criar benefício turbinado, que prevê a distribuição de botijões de gás para famílias em todo o país, sem prazo para encerramento.
Em janeiro, Lula lançou o programa Pé-de-Meia, auxílio mensal de R$ 200 para estudantes de baixa renda do ensino médio em escolas públicas mediante o cumprimento de critérios como frequência mínima ou participação em exames de avaliação. A intenção era gastar R$ 6 bilhões neste ano e R$ 20 bilhões até 2026. Tudo fora do arcabouço fiscal.
O Congresso aprovou em maio a antecipação de R$ 15,7 bilhões, sem saber se receitas extraordinárias que permitiriam a despesa se confirmariam. O Planalto preferiu inserir o valor no projeto que recriou o seguro obrigatório de veículos (DPVAT). O governo tem apelado ainda a outros mecanismos para contornar regras fiscais, como a polêmica transferência ao Tesouro de recursos esquecidos em contas bancárias.
Foco em receitas extraordinárias agrava a desconfiança na gestão das contas públicas
Em artigos e entrevistas, os economistas Marcos Lisboa e Marcos Mendes, do Insper, alertam sobre o risco de deterioração da credibilidade fiscal. Entre os exemplos citados estão a autorização para a Empresta Gestora de Ativos (Emgea) comprar para revender créditos imobiliários, transferindo os riscos ao setor público, além de possíveis manobras contábeis envolvendo estatais, como Telebras e Correios.
O cientista político Leonardo Barreto, diretor da consultoria I3P, afirma que a vinculação da política econômica ao jogo eleitoral torna os cenários futuros ainda mais incertos. Para ele, a única certeza é o avanço de receitas e, sobretudo, de despesas, mas sem compromisso com o equilíbrio fiscal.
Para o especialista, o foco nas classes de rendas mais baixas é evidente, a exemplo do programa Gás Para Todos. Isso se deve à popularidade de Lula estar concentrada nesse grupo. A falta de base parlamentar sólida pode, contudo, criar dificuldades para se aprovar novas medidas pró-arrecadação.
Segundo o analista financeiro VanDyck Silveira, o mercado percebe sinais de grave risco fiscal há mais de um ano, que se refletem nas taxas de juros futuros. Ele alerta que, sem grande corte de gastos, desvinculação das despesas com saúde e educação, abandono da valorização do salário-mínimo e realização de privatizações, o Brasil pode chegar a 2026 com inflação de dois dígitos, dólar a R$ 7 e dívida em 90% do PIB.