O Supremo Tribunal Federal está prestes a decidir até onde vai o direito dos povos indígenas de escolher seu próprio destino. Em pauta, dois processos podem redefinir não apenas os limites da mineração e da geração de energia em terras indígenas, mas o próprio papel do Estado diante da autonomia dos povos originários e da segurança jurídica dos empreendimentos que os impactam.
No dia 20 de março, foi feita uma audiência para discutir a possibilidade de restrição à mineração no entorno do território do povo indígena Cinta Larga, localizado nos estados de Rondônia e Mato Grosso (Agravo em Recurso Extraordinário – ARE 1425370/RO). A Terra Indígena Roosevelt, uma das regiões mais ricas em diamantes brutos do país, tem sido alvo de intensa atividade clandestina, alimentando um ciclo de violência e degradação ambiental. O episódio mais emblemático ocorreu em 2004, quando 29 garimpeiros foram mortos em confronto com indígenas.
O Brasil não precisa ampliar a proibição absoluta de atividades econômicas para as adjacências de territórios indígenas, mas sim editar uma lei que discipline, de forma abrangente e efetiva, o exercício efetivo da autodeterminação
Poucos dias antes, em 11 de março, o ministro Flávio Dino concedeu liminar no Mandado de Injunção 7490/DF, determinando que os royalties pagos à União pela operação da usina hidrelétrica de Belo Monte sejam integralmente revertidos às comunidades indígenas afetadas. Segundo a decisão, a ausência de regulamentação do artigo 231, §3º, da Constituição impede que essas comunidades participem dos resultados do empreendimento, mesmo quando este não está situado dentro de seus territórios. A medida, que deve ser estendida a casos semelhantes, já contava com o referendo dos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, quando foi objeto de pedido de destaque pelo ministro Luís Roberto Barroso para que seja submetida a julgamento presencial pelo Plenário do STF.
Nos dois casos, discute-se a ampliação da aplicação do artigo 231, §3º, que regula a mineração e a geração de energia hidrelétrica dentro de terras indígenas, para incluir também o seu entorno. Atualmente, a exploração desses recursos dentro de territórios indígenas – mesmo que pelos próprios indígenas – depende de regulamentação legal ainda inexistente. Já as atividades nas proximidades das terras indígenas são permitidas, desde que observem restrições e normas nacionais e internacionais, como a consulta livre, prévia e informada e a mitigação e compensação dos impactos socioambientais.
A ampliação da vedação pode, na prática, inviabilizar atividades minerárias e hidrelétricas não apenas dentro das terras indígenas, mas também em um raio de até dez quilômetros ao seu redor. Sem uma regulamentação legal adequada, essa interpretação tende a aumentar a informalidade, empurrando empreendimentos licenciados para a clandestinidade. Conforme alerta o próprio ministro Flávio Dino, a ausência de regulamentação “favorece o garimpo ilegal, o ‘narcogarimpo’ e a crescente atuação de organizações criminosas, sobretudo na Amazônia”. Como resultado, “os povos indígenas ficam com pesados ônus, sem benefícios, mesmo que alguns se associem ao garimpo ilegal”. Longe de proteger os povos indígenas, essa abordagem pode fortalecer atividades criminosas, intensificar a devastação ambiental e perpetuar sua marginalização econômica.
Os povos indígenas enfrentam grandes desafios para efetivar os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição e por tratados internacionais, como a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção 169 da OIT. Destaca-se, entre eles, o direito à autodeterminação, que lhes garante liberdade para definir seu futuro político e econômico. Isso inclui a decisão de se engajar ou não em atividades econômicas, como parcerias na exploração legal de recursos naturais, que deve ser tomada por meio de consulta, sem pressão indevida de empresas, ONGs ou do poder público.
O Brasil abriga mais de 300 etnias indígenas, cada uma com realidades, tradições e visões próprias. Supor que todas desejam seguir o mesmo caminho – seja pela exploração econômica ou pela total preservação – é desconsiderar a sua autonomia decisória. O conceito de autodeterminação pressupõe que diferentes comunidades façam escolhas distintas. Impor a proibição absoluta por meio da omissão legislativa contínua significa negar essa diversidade e tratá-las como um bloco homogêneo. Estabelecer barreiras sem ouvir essas comunidades não é protegê-las, mas perpetuar a sua dependência e subordinação.
O Brasil não precisa ampliar a proibição absoluta de atividades econômicas para as adjacências de territórios indígenas, mas sim editar uma lei que discipline, de forma abrangente e efetiva, o exercício efetivo da autodeterminação, permitindo a adequada implementação da Convenção 169 da OIT. Só assim as comunidades indígenas poderão se manifestar sobre a aceitação e as condições de eventuais atividades minerárias e energéticas que possam afetá-las diretamente, bem como usufruir dos benefícios gerados pelos empreendimentos que vierem a ser implementados.
O próprio povo Cinta Larga já manifestou interesse em extrair e vender os diamantes de seu território. Paradoxalmente, o Estado brasileiro não apenas inviabiliza essa alternativa ao se omitir na regulamentação do tema, como também considera ampliar essa vedação para impedir atividades nas proximidades do território indígena.
Enquanto o Brasil não enfrentar essa questão de maneira clara e racional, deixando de lado paixões e ideologias, seguiremos negando efetividade à nossa Constituição e aos compromissos internacionais, perpetuando um ciclo de marginalização dos povos indígenas e retirando-lhes o direito fundamental à efetiva autodeterminação. Continuaremos a silenciar as vozes indígenas ou reconheceremos, enfim, seu direito de decidir sobre o próprio futuro?
Frederico Munia Machado, procurador Federal da AGU,é mestre em Direito e Política Mineral. Foi secretário especial adjunto do Programa de Parcerias de Investimentos – PPI; Carla Fonseca de Aquino Costa, analista ambiental do IBAMA, é especialista em Direito Ambiental. Foi coordenadora-geral de Licenciamento Ambiental da FUNAI e Secretária de Apoio ao Licenciamento Ambiental do PPI.