Quem já executou um projeto medianamente complexo no Brasil terá se deparado com alguma falha de execução incompreensível, o que muitos atribuem erroneamente ao baixo QI do brasileiro. Não um erro simples e pequeno, mas algo tão extraordinário, que seria difícil prever. A desvirtuação completa da tarefa delegada, uma espécie de subversão na qual os interesses do delegatário se sobrepõem completamente ao objetivo da tarefa, gerando efeitos catastróficos.
Imaginemos a instalação de um ralo, que, para não exalar mau odor, necessite ser feita de uma maneira específica. Mas que, salvo supervisão direta momento a momento, será instalado da maneira mais conveniente para o prestador de serviço. Independentemente de a instalação do produto cumprir sua função primordial. O importante é que o serviço pareça funcionar o suficiente para que o prestador possa receber os valores cobrados e depois atribuir o erro a outra pessoa, aos deuses. Parecer instalar o ralo é apenas o meio através do qual se concretiza o objetivo de levar a vantagem financeira.
A diluição moral do brasileiro nos últimos 40 anos fez com que toda transação tenha se transformado de uma troca mutuamente benéfica, em um cálculo maximização de vantagens no curtíssimo prazo. Apesar de gerar ganhos individuais para quem extrai a máxima vantagem imediata, os prejuízos sociais são enormes no agregado. Inclusive para o malandro. Em particular, torna-se impossível a realização de processos complexos, que sejam dependentes de múltiplos níveis de delegação e/ou alto grau de confiança mútua.Ou seja, a diluição civilizacional, a substituição do certo pelo vantajoso, tem destruído o Brasil.
Primeiramente, o número de conflitos sociais se torna infinito, pois todos se sentem lesados quando não obtêm a vantagem que desejam. Sem acordo civilizacional o próprio conceito de troca justa desaparece. Como é de se esperar, nem o mais eficiente judiciário do mundo daria conta de uma sociedade que passou a ter infinitos conflitos. Pior, em algum momento a incivilidade atinge graus tão grandes que, mesmo sendo adjudicados todos os conflitos do país, não seria possível fazer cumprir as decisões. Pois os cidadãos resisti-las-iam.
Não é fácil saber quando o nosso declínio terminará, mas na medida em que o país envelhece aceleradamente, ficará cada vez mais óbvio que o Brasil gastou toda sua energia de país jovem brigando, destruindo o pouco que tínhamos, sem ter construído absolutamente nada.
Como viver em sociedade num cenário assim? O Brasil dos últimos anos nos dá a resposta de diversas maneiras. Ela está na explosão de consumo de esteroides anabolizantes, na abundância de tatuagens cobrindo os corpos brasileiros, no lucro dos bancos, na guerra política, no número de emigrados e de amantes dos animais, na proliferação de fraudes e golpes, e, claro, nas estatísticas criminais de violência interpessoal. Resulta o empobrecimento e emburrecimento brutal do país, não importa o que diga o IBGE sobre o PIB e educação formal.
Um olhar mais atento acerca da história recente do país demonstra irrefutavelmente a crise civilizacional através de uma série de falhas sistêmicas. Chernobyl, tanto a explosão quanto a resposta a ela, foram indicadores concretos da ruína soviética seis anos depois. O Brasil teve diversos Chernobyls nos últimos 15 anos, sem que ninguém se atente à falência completa do sistema. O rei está nú, mas ninguém é capaz de dizer.
Aqui, cabe esclarecer que não considero como acidentes boa parte daquilo que a opinião pública assim chama. Os deslizamentos de represa; o solapamento de minas; as fraudes corporativas na casa dos bilhões; as milhares de pirâmides financeiras; a queda do avião da chapecoense; o 7a 1 da Seleção Brasileira e sua continua desmoralização; mais e mais frequentes acidentes aéreos e de ônibus.
Esses são o subproduto necessário da reunião de muitos brasileiros gerenciando processos acima de sua capacidade cultural, focados em fazer a tarefa como mais lhes convém. Não é coincidência que tudo no Brasil esteja funcionando mal, o software que roda em nosso hardware está corrompido. Os valores que unem as pessoas são mentirosos ou inexistentes. O abandono, desalento, descrença institucional, enfim o colapso civilizacional está na raiz da disfuncionalidade de tudo que é tocado pelos brasileiros. Da gigante multinacional à pequena reforma de banheiro, nada escapa a esta tempestade incivilizatória que se tornou o brasileiro. Involuímos como sociedade, a crise econômica e política são apenas sintomas da doença.
Para ligar os pontos que desenham este horror, é preciso dar um passo atrás e entender o que perdemos: valores civilizatórios. Uma civilização é um acordo social para o entendimento comum, a partir do qual se gestionam expectativas e por meio da qual são resolvidos conflitos. Sem ela a violência, intimidação e o poder se tornam a forma lógica de resolução de conflitos – a guerra, a barbárie.
Quando a incivilidade domina, é preciso sinalizar periculosidade a todos antes que o conflito ocorra. No mundo animal isto se chama de apossematismo, a maneira através da qual animais peçonhentos sinalizam esta característica a seus predadores, evitando um conflito no qual ambos morram. No Brasil a periculosidade é anunciada montanhas de músculos e corpos cobertos de tatuagens. Pense nas pinturas corporais dos indígenas e escoceses, ou nas tatuagens de guerra dos polinésios.
Como bem sabemos, as estratégias de dissuasão nem sempre funcionam, então o passo seguinte é a utilização da violência propriamente dita como meio de obtenção da vantagem supostamente devida ao brasileirinho. Neste conceito incluímos desde a violência usada para arbitrar desavenças entre indivíduos até a violência usada para arbitrar conflitos mais amplos, tais como a obtenção de bens dos quais o indivíduo tenha necessidade (real ou percebida). O primeiro tipo de violência é produto de duas ausências. Substitui os valores comuns como fatores preventivos de conflitos, e a polícia e poder judiciário como elementos punitivos, impositores de civilidade, remediando conflitos. Ele se manifesta por exemplo quando alguém mata para arbitrar uma desavença comportamental ou patrimonial, ou ainda no linchamento para arbitramento da questão penal.
Já o segundo tipo de violência, igualmente abundante em nosso país, é aquela usada como substituto da troca econômica voluntária e mutualmente vantajosa. De maneira mais primária, estamos descrevendo o fenômeno daqueles que, desprovidos de qualquer habilidade economicamente útil, ou providos de uma ambição desproporcional às suas habilidades, abusam do outro para obtê-lo. Para entender o tamanho do problema brasileiro, é importante inserir neste segundo conceito de abuso/violência também a fraude. Isto porque, assim como no roubo, a fraude é uma maneira de obter vantagem econômica aproveitando-se da fragilidade alheia. No roubo abusa-se da fragilidade física, na fraude da fragilidade mental ou da falta de conhecimento da vítima – sobre a maneira como um ralo foi instalado, por exemplo.
Somando-se os roubos, homicídios, latrocínios estelionatos e outros crimes do gênero, somos forçados a concluir que a maneira predominante de interação social no Brasil é a violência. Pior, se ao invés de olharmos para o número de pessoas presas por 100 mil habitantes, olharmos para o número de pessoas presas por 100 mil crimes, seremos forçados a perceber que o Brasil talvez seja o país que menos prende no mundo. Como sobreviver (e prosperar) numa sociedade assim? Veremos a seguir.
Uma sociedade incapaz de gerar escala e realizar a divisão de tarefas é fadada ao fracasso econômico. Por isso todos os planos econômicos falham em nosso país, ausente a presença de alguma força direta e amedrontadora, que seja capaz de oprimir o brasileiro, impondo civilidade. Seja ela o Estado, a milícia ou o poder paralelo. Sendo assim, em uma sociedade na qual quase tudo dá errado, e a violência é a regra, os bancos são um dos lugares onde as mais brilhantes mentes buscam proteção ao perceberem a natureza de soma negativa de todas as outras atividades econômicas no Brasil.Através de fórmulas matemáticas muito bem estruturadas e venda de sonhos impossíveis, os bancos ganham de lavada no campeonato mundial de tomada de vantagem que virou nosso país.
Igualmente cientes da disfuncionalidade brasileira, outros vão se dedicar ao processo de tentar mudá-la através da mobilização política, ou vender a ideia de que o farão. Tomam lado na guerra civil desarmada da qual temos feito parte nos últimos 12 anos, que cada vez mais radicalizada e destrutiva, parece ter beneficiado apenas os maestros dessa ópera bufa. De briga em briga, julgamento em julgamento, nossa política dá vazão à raiva, sem permitir-nos progredir um milímetro na conciliação de interesses e concretização de um plano civilizacional.
Quem não vê saída por dentro do sistema e tem energia, emigra. São centenas de milhares de brasileiros inteligentes e capazes que vêm deixando o país por não mais aguentarem tamanho grau de incivilidade. Pessoas de posses, que percebem que só a riqueza na casa dos bilhões é capaz de proteger contra tamanho declínio. Um exemplo disto se deu quando um amigo endinheirado me ligou preocupado com o aumento de sequestros, dizendo que pretendia tomar medidas para se precaver. Coube-me dar a triste notícia de que o melhor que poderia fazer era rezar. Isto porque sua forma e quantidade de riqueza lhe exigia circular em determinados lugares, com determinadas roupas e carros, mas não lhe bastava para contratar escolta armada 24 horas por dia para si e sua família.
Por fim, quem não vê saída e não tem energia, se isola do contato humano, normalmente comprando um animal de estimação e tornando-se partidário da causa do bem estar animal. Seja como forma de canalizar o seu amor, ou como meio de canalizar o seu ódio contra os supostos inimigos dos animais. Não é fácil saber quando o nosso declínio terminará, mas na medida em que o país envelhece aceleradamente, ficará cada vez mais óbvio que o Brasil gastou toda sua energia de país jovem brigando, destruindo o pouco que tínhamos, sem ter construído absolutamente nada.
Bernardo Weaver é advogado e mestre em Direito Penal pela Universidade de Harvard.