O fenômeno Frei Gilson, ou seja, a notável popularidade e influência do Frei Gilson da Silva Pupo Azevedo, um padre carmelita mensageiro do Espírito Santo, tem chamado a atenção para a dimensão carismática da experiência católica, para muito além da já conhecida Renovação Carismática. Fora do âmbito católico, poucas pessoas conhecem a realidade transversal que perpassa toda a dimensão da Igreja Católica e que coexiste com a hierarquia (papa, bispos e padres) sem confusão e sem separação, sendo-lhe “coessencial”. Isto quer dizer que a Igreja Católica possui, ao mesmo tempo, uma dimensão hierárquica e também uma dimensão carismática - de carismas.
Mas o que isso quer dizer? Vejamos o caso de Frei Gilson. Ele se tornou uma figura proeminente no ambiente religioso brasileiro, atraindo milhões de seguidores e espectadores para suas transmissões online, particularmente o “Rosário da Madrugada”. Frei Gilson é um exemplo da dimensão carismática no âmbito católico. Mas o que são os carismas, na vida da Igreja?
A palavra “carisma” vem do grego “charis”, que significa “graça”, “dom”. Para a Igreja Católica, os carismas são dons concedidos pelo Espírito Santo, que devem ser exercidos em comunhão para a construção da Igreja e a santificação do mundo. O apóstolo São Paulo fala sobre os carismas especialmente em 1ª Coríntios, Romanos e Efésios. Ele ensina que os carismas vêm todos do mesmo Espírito (1Cor 12,4), são distribuídos a cada um conforme a vontade de Deus (1Cor 12,11) e devem ser usados para o bem comum (1Cor 12,7).
A doutrina católica acerca dos carismas foi sendo gradualmente sistematizada. Santo Agostinho afirmou que os carismas são distribuídos pelo Espírito Santo “a cada um conforme lhe apraz”, sempre visando o bem comum e não a exaltação pessoal, enfatizando que os dons carismáticos devem estar subordinados à caridade. Santo Tomás de Aquino também afirmou que os dons carismáticos não são concedidos para glória pessoal de ninguém, mas sim para o bem da comunidade cristã. O Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática Lumen Gentium reafirmou que os carismas são “graças especiais” concedidas pelo Espírito Santo para o serviço e a edificação da Igreja, que devem ser discernidos e guiados pelo papa e pelos bispos.
A fé não pode ser simplesmente ensinada como um conjunto de ideias, mas deve ser transmitida por meio de uma experiência viva da tradição, da comunidade e do testemunho. Esta dimensão educativa é essencial para enfrentar a crise da fé no mundo moderno
O Catecismo da Igreja Católica ensina que os carismas são variados e servem à renovação e missão da Igreja. A autoridade da Igreja tem o papel de discernir sua autenticidade e bom uso. A Igreja Católica ensina que nem toda manifestação espiritual é autêntica. O discernimento é essencial para evitar abusos. Um carisma autêntico deve estar em conformidade com a doutrina católica, gerar frutos, ser exercido em obediência à Igreja e promover a unidade e não a divisão.
Muitos destes carismas deram origem a novos movimentos eclesiais, que são agrupamentos dentro da Igreja Católica que surgiram, sobretudo, no século XX, especialmente após o Concílio Vaticano II (1962–1965), como respostas aos desafios do mundo moderno. São impulsionados por leigos (muitas vezes com presença de clérigos), possuem forte ênfase na vida comunitária, na evangelização, na formação espiritual e na ação social. Eles trazem dinamismo à vida cristã e são instrumentos da nova evangelização. Entre os novos movimentos e comunidades eclesiais, podemos citar:
1. Renovação Carismática Católica (RCC): surgiu nos Estados Unidos em 1967. É um carisma de origem totalmente comunitária. Sua ênfase está nos dons do Espírito Santo, na oração espontânea e na cura interior. Se constitui uma presença forte na evangelização jovem e popular. É um movimento amplo e diversificado, com muitas expressões, como a Canção Nova no Brasil. É o maior movimento da Igreja Católica, com cerca de 25 milhões de membros ativos hoje, com mais de 200 milhões de pessoas diretamente impactadas por sua existência.
2. Comunhão e Libertação (CL): fundado pelo padre Luigi Giussani em 1954, na Itália. Valoriza a experiência cristã concreta no cotidiano. O ponto central é que Cristo responde ao desejo de verdade, beleza, liberdade e felicidade do coração humano. A fé deve ser uma experiência que transforma toda a vida. Enfatiza a razão e a liberdade. O cristianismo é visto como encontro com uma presença viva, e não como um conjunto de regras. Dá grande destaque ao envolvimento cultural, educacional e social dos seus membros. Tem presença marcante em universidades e ambientes intelectuais. Possui 100 mil membros.
3. Caminho Neocatecumenal: fundado por Kiko Argüello e Carmen Hernández na Espanha, na década de 1960. Enfatiza a redescoberta do batismo e a formação cristã em comunidades. Propõe um itinerário de formação cristã para adultos. É inspirado nas comunidades do cristianismo primitivo. O caminho é vivido em pequenas comunidades dentro da paróquia. Tem uma fortíssima vocação missionária e vocacional. Possui 1 milhão de membros.
4. Focolares (Obra de Maria): fundado por Chiara Lubich em 1943, na Itália. Inspirado na oração de Jesus: “Que todos sejam um” (Jo 17,21). Enfatiza a vivência do Evangelho no cotidiano, em todos os ambientes (família, trabalho, política). Prega a comunhão profunda com Deus e com o próximo. Tem presença internacional e inter-religiosa, com diálogos ecumênico, inter-religioso e com não crentes. Pratica ações em favor da paz, da justiça social e da fraternidade universal. Possui 2 milhões de membros.
5. Comunidade de Sant’Egidio: fundada por Andrea Riccardi, em 1968, em Roma. Tem foco na oração, no serviço aos pobres e na promoção da paz. É muito ativa na mediação de conflitos internacionais. Promove o diálogo inter-religioso e encontros como o “espírito de Assis”. É totalmente leiga, mas com apoio eclesial sólido. Possui 50 mil membros.
6. Opus Dei: fundada por São Josemaría Escrivá na Espanha, em 1928. Prega a santificação do trabalho cotidiano e da vida comum. Ensina que todo cristão pode ser santo vivendo com fé suas responsabilidades diárias, no trabalho, na família e na sociedade. Focaliza a vida interior, a oração e os sacramentos. Garante uma formação espiritual e doutrinária sólida. Tem participação ativa na sociedade e no mundo profissional. É composta por leigos, sacerdotes e celibatários vivendo no mundo. Possui 94 mil membros.
Luigi Giussani (1922-2005), fundador do movimento Comunhão e Libertação (CL), destacou-se por sua abordagem existencial e cristocêntrica da dimensão carismática. Para ele, um carisma não é apenas um conceito teológico, é um acontecimento real, um encontro que transforma a vida e dá origem a uma comunidade cristã viva. Giussani aprofundou a compreensão do Concílio Vaticano II ao destacar que um carisma é um modo concreto pelo qual Cristo se torna presente na vida das pessoas e da Igreja. O cristianismo não é antes de tudo um conjunto de doutrinas ou uma moral, mas é um acontecimento, um encontro real com Cristo que desperta a fé e transforma a existência. Por isso, Cristo deve ser reconhecido e seguido dentro da realidade concreta, no trabalho, nas relações humanas e nos desafios do mundo.
Giussani vê o carisma como um método educativo. Para ele, a fé não pode ser simplesmente ensinada como um conjunto de ideias, mas deve ser transmitida por meio de uma experiência viva da tradição, da comunidade e do testemunho. Esta dimensão educativa é essencial para enfrentar a crise da fé no mundo moderno. A proposta cristã deve ser algo que impacta a vida das pessoas, tornando-se um caminho concreto e atraente.
Para Giussani, o primeiro fator constitutivo de um movimento é deparar-se com uma diversidade humana. E um deparar-se que não se estagnou no tempo e virou apenas uma lembrança, mas como algo que prossegue no tempo, renovando-se e atualizando-se. Deparar-se com a presença de uma humanidade diferente vem antes não apenas no início, mas em cada um dos momentos que se seguem ao início; não “como” aconteceu, mas “o que” aconteceu. E é desta experiência, deste renovar-se, deste estar imerso nesta dinamicidade, que nasce um sujeito novo, seja no mundo do trabalho, na política, na missão (inclusive nas mídias sociais, como Frei Gilson) ou nas obras de caridade.
Dimitri Martins é mestre em Administração e especialista em Gestão Pública.